A repetência nas primeiras séries brasileiras é uma das mais altas do mundo. Até quando as crianças vão ser punidas pelo descaso com a educação? Ana Aranha/Época
SÓ METADE PASSOU Sala de aula em Maiquinique, interior da Bahia. Apenas 56% dos alunos foram aprovados ao fim da 1ª série em 2007
Os alunos brasileiros estão entre os mais reprovados de ano no mundo. Só perdem para as turmas de Suriname, Nepal e um grupo de 12 países da África. Os dados são do Relatório Global de Monitoramento da Educação Para Todos, lançado na semana passada pela Unesco. O mais abrangente balanço anual sobre o acesso e a qualidade do ensino faz um alerta: os governos precisam se responsabilizar mais pela gestão da escola pública. É um recado que parece feito sob medida para o Brasil. No país que reprova uma a cada quatro crianças da 1a série, podem-se culpar as crianças – ou o problema é de uma escola mal preparada para recebê-las? A enxurrada de notas vermelhas que o relatório crava no boletim da educação nacional não deixa dúvida. Governantes, secretários, diretores e professores é que deveriam levar bomba. A avaliação da Unesco se concentra no ensino da 1ª à 4ª série. O índice de repetência total dessa fase no Brasil é de 19%. Esse é só o começo do problema. A humilhação de sentar entre colegas bem mais jovens faz muitos alunos abandonar a escola. Por isso, o Brasil também foi mal no índice de “sobrevivência” na educação primária. Apenas 80% das crianças que entraram na 1a série chegaram ao fim da 4a. Pior que a sobrevivência na Bolívia, no Paraguai e no Quênia. “A repetência leva ao abandono, e esses índices são um problema sério para o Brasil”, diz a analista de políticas Nicole Bella, uma das autoras do relatório. A falta de competência para reter os alunos na escola resultou na queda do Brasil no ranking geral do relatório. Ele é ordenado pelo desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação, que combina dados de acesso e qualidade. De 129 países, o Brasil caiu da 76ª para 80ª posição. Para fechar o boletim, o Brasil é o único representante da América Latina na lista de países com mais de 500 mil crianças fora da escola. Ao lado do Senegal e Iraque. Os dados do Brasil citados no relatório são de 2003 – mas houve pouca melhora na maioria dos índices até hoje. “Este é o resultado do descaso. Há anos os governantes no Brasil só falam sobre a importância da educação, mas não aumentam o investimento”, afirma Sonia Penin, diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. O Brasil investe hoje 5% do PIB na área. A Unesco recomenda 6% na América Latina. Para Célio da Cunha, professor da Universidade de Brasília e consultor da Unesco no Brasil, o país só vai começar a melhorar quando cumprir essa meta: “Infelizmente, parece mais fácil jogar a culpa nos alunos”. A reprovação seguida de abandono é sintoma de uma perigosa cultura enraizada na escola pública: o responsável pelo fracasso é sempre o aluno, que não prestou atenção na aula. Ou sua família, que não valoriza a educação. “As escolas são responsáveis pelo aprendizado. Todos têm condição de aprender, nós é que não estamos em condições de ensinar”, afirma Cunha.
As marcas da cultura do fracasso não ficam só nas crianças que saem da escola. Nas regiões mais pobres, onde o ensino é pior, faz parte da formação de todas as turmas. “Onde as salas são lotadas e os professores mal preparados, o aprendizado é muito prejudicado. E as crianças que não conseguem acompanhar o conteúdo crescem achando que são burras, incapazes”, diz a socióloga Irene Rizzini, pesquisadora da PUC-Rio e presidente do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância. Nos primeiros anos de escola, o processo é ainda mais cruel, já que as crianças ainda não conseguem perceber as deficiências do sistema a seu redor. “Elas absorvem tudo no nível pessoal, desenvolvendo um sentimento de impotência e incompetência. É desumano.”
Para resolver o problema, alguns Estados e municípios brasileiros adotaram a Progressão Continuada. É um sistema que abole a reprovação para algumas séries, dando aos alunos e à escola mais tempo para fazê-los acompanhar o ritmo dos demais. Mas foi criticado por permitir a aprovação de alunos mesmo sem saber o conteúdo. Isso gerou distorções como adolescentes ainda semi-analfabetos cursando a 6ª série. Em vez de Progressão Continuada, começou a ser chamado de “Aprovação Automática”. E caiu no descrédito dos pais e professores. Para Sônia, porém, o sistema é bom. Só tem de ser bem aplicado. “É necessário ter turmas menores, atendimento individual, aulas de reforço. As dificuldades devem ser trabalhadas quando aparecem, não podem ser jogadas para outra série.” Para Cunha, não há como reduzir a reprovação sem melhorar a qualidade do ensino de 1ª à 4ª, com qualificação dos professores e reforma das escolas. “O nó é a qualidade nos primeiros anos. Desatado, tudo ficaria mais fácil. Mas, para isso, precisa haver mais investimento.”
Enquanto a mudança não vem, a escola pública segue distante de sua função. Em pesquisa com 5 mil famílias, Irene, da PUC, perguntou aos pais com que pessoas e instituições podiam contar para a educação de seus filhos. A primeira figura a aparecer foram os avós, que sustentam os netos com a aposentadoria. Em segundo lugar, vieram as respostas “conto com Deus” e “não conto com ninguém”. A escola nem entrou na lista, tão pequena a parcela de pais que se lembrou de citá-la.
Pior que a África O porcentual de alunos brasileiros que repetiram o ano entre a 1ª e a 4ª série é maior que a média de repetentes da África Subsaariana, América Latina e Leste Asiático