Erika Klingl - Correio Braziliense e Diego Amorim - Correio Braziliense
Publicação: 27/10/2008 07:56 Atualização: 27/10/2008 08:17
Aluno da 7ª série do ensino fundamental, Rafael* é negro. “Só que um dia o professor chamou ele de preto de sangue ruim. Daí, ele nunca voltou para a escola”, conta o colega de turma do adolescente. “É comum eu ouvir: ‘Olha, ela veio com a mesma roupa de novo.’ E eu finjo que ignoro”, desabafa uma menina do 1º ano do ensino médio. “Aqui, se a pessoa tiver um jeito estranho já é gay e acaba sendo zoada”, afirma Carolina*, da 8ª série. Em comum, essas histórias têm o cenário — salas de aula da rede pública de ensino — e o preconceito.“A escola é um ambiente cheio de conflitos, o que não é ruim. Mas quando eles não são mediados de forma adequada acaba resultando em violência, mesmo que simbólica”, explica a socióloga Miriam Abramovay, responsável por uma pesquisa que, pela primeira vez, diagnosticou a violência da rede pública de ensino no DF. O levantamento, feito com mais de 11 mil pessoas, entre alunos e professores, abordou o problema nas escolas de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental e no ensino médio. A análise reflete um universo de mais de 186 mil estudantes e outros 20 mil docentes. Os dados relacionados ao preconceito são assustadores.Nada menos que 55% dos estudantes já viram discriminação nas escolas por causa da cor e quase 13% contam que sofreram. Em números absolutos, isso representaria 24 mil adolescentes. Mas o que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi a discriminação por causa da pobreza, sentida por 6,1% dos estudantes e vista de perto por 42%. “A gente não imagina que os números sejam tão altos”, observa Miriam. Nas entrevistas, ela ouviu expressões que a chocaram. “Assentamento Haiti é nome de rua de Santa Maria. Churrasquinho é apelido de negros.” Para a educadora Beatriz Castro, o fato preocupa. “Fica a dúvida se a escola cumpre o papel de formar cidadãos”.DesmaioQuando o assunto é preconceito por ser ou parecer homossexual, os casos são ainda mais freqüentes: 63% dos alunos dizem que já viram discriminação. Dos estudantes do ensino médio, 4,3% já sentiram na pele a discriminação. Maurício* foi um deles. Tanto ouviu que um dia não agüentou tanta zombaria. Durante a apresentação de dança na feira cultural do Centro de Ensino Médio 3 de Ceilândia, duas semanas atrás, até tentou abstrair os xingamentos que ouvia, os gritos de veado e baitola. Mas, quando acabou a música, desmaiou. “Ele já estava nervoso. Com o povo zoando, ficou mais ainda. Aí desceu do palco, foi andando até o fim do auditório e caiu”, descreve um aluno da 7ª série. O episódio ainda é comentado entre os estudantes. Maurício, segundo a turma, é homossexual assumido.Os que gostam de ser os “malandrões” do colégio são os que mais zoam os colegas. Para sustentarem o status, costumam atingir os mais fracos, os negros, os gordos, os mais pobres, os baixinhos. Agridem com palavras, comentários, risadas. “O pessoal fica mangando de mim direto, me chamando de ‘limpador de aquário’, essas coisas. Mas deixo quieto. Um dia ou outro eles vão cair na real”, diz um garoto de 14 anos, 1,51m de altura, aluno da 8ª série do Centro de Ensino Fundamental 4 de Ceilândia. Na cidade em que mora e estuda, os xingamentos já foram ouvidos por 42% dos estudantes. Isso porque Ceilândia está longe de estar entre as piores. De acordo com a pesquisa, em Brazlândia e Santa Maria, metade dos estudantes costumam sofrer violência desse tipo.Auto-estima e 14º salárioPara melhorar as relações entre professores e alunos das escolas, o governo aposta em duas estratégias. A primeira é o investimento na auto-estima dos docentes e na satisfação pessoal. Para isso, implementa, desde o início do ano, o plano de cargos e salários da categoria — que privilegia tempo de serviço, títulos e merecimento. Além disso, o governador José Roberto Arruda criou o 14º salário, que será pago a partir de 2009, para os professores e servidores que trabalham nas escolas que cumprirem metas de qualidade de ensino e gestão.No combate à discriminação nas salas de aula, a estratégia é incluir os temas relacionados às minorias nas matérias ensinadas nas escolas. “A história da África, por exemplo, pode fazer parte do conteúdo de português, geografia, história, sociologia”, explica a secretária-adjunta de Educação, Eunice Oliveira. Os conceitos são passados, de acordo com ela, de forma transversal, ou seja, permeando a teoria. “O mesmo pode ser feito com outras temáticas ligadas aos direitos humanos.” (EK e DA)Prejuízo claro ao aprendizadoA insegurança no ambiente escolar reflete no bem-estar de todos os personagens do sistema de ensino. Os números são alarmantes. Por parte dos professores, 43% afirmam que não se sentem respeitados, ao passo que 38,7% dizem ter espaço para dizer o que pensam. E o pior: 79% declaram que não se sentem realizados profissionalmente. É só acompanhar a história de um professor de Brazlândia que pediu para não ter o nome divulgado para entender o que significam os indicadores. O quadro de saúde dele se agravou depois de ser alvo de agressões de alunos. Ele sofre de pressão alta, toma remédio controlado e, por isso, anda meio sonolento.Em um dia de prova, depois de distribuir as questões, o professor não suportou o cansaço e dormiu na carteira. Alguns alunos não perdoaram: o xingaram de gordo, lerdo, careca. O professor chorou, passou mal e saiu da sala. “Fazem isso para chamar atenção da turma. Para o pessoal comentar: ‘Olha, ele enfrenta até o professor’”, comenta uma aluna de 16 anos, do 1º ano.No ano passado, outro professor, dessa vez do Centro de Ensino Médio 417, de Santa Maria, encontrou motivos para se sentir insatisfeito no ambiente de trabalho. Uma aluna não gostou de ter sido repreendida por ele e apelou. Pegou a mesa e, descontrolada, jogou-a em direção ao docente. Ela foi expulsa, mas, segundo estudantes do colégio, já voltou à sala de aula. Na mesma escola, ainda no ano passado, outro professor levou um tapa em sala. O agressor também reagiu a uma repressão. “A gente já se acostumou com esse ambiente. Tem que acostumar”, comenta uma estudante de 14 anos, do 1º ano. “Mas para quem está de fora, ouvir esse tipo de coisa deve ser estranho mesmo”, completa a colega de turma dela, de 16 anos.Ambiente pesadoAs ofensas e agressões, que muitas vezes são físicas, pesam no aprendizado. A percepção é de professores e alunos: 42% dos estudantes reconhecem que o clima de violência reduz a qualidade da aula e quase 40% admitem dificuldade em se concentrar. Fora os 39,8% que não sentem vontade de ir à escola. Entre os professores, os índices de resposta a essas perguntas foram maiores: 71% acreditam que, com a violência, o ambiente da escola fica pesado; 67,6% afirmam que a qualidade das aulas diminui; 64,8% acreditam que os alunos não se concentram nos estudos e 55,1% dos professores afirmam que os alunos não sentem vontade de ir à escola devido à violência. (EK e DA)
*Nomes trocados para proteger os alunos
::. Escrito por Stella Bortoni às 08:21:17
Fonte:
www.stellabortoni.com.br